terça-feira, 19 de dezembro de 2006

Lembranças, tantas...
Do dia que raiou
E a confusão estalou
Mortes, tantas...

O medo, o caos, o horror
Em todos os lares pairou
Noite e dia a paz se dissipou

E todos nós desarmados
Tentando coragem demonstrar
Crianças, adultos, idosos pasmados
Por uma guerra qu'acabava de estalar

Fui então p'ra Luanda
Mas nem comer já havia
Nem o tiroteio de casa deixava sair
Eu tinha uma imensa fobia

De lá partimos p'ra Carmona
P'ra tentar chegar ao Negage
Já nem sei quem dominava a zona
Todos então eram iguais no ultraje

Havia uma barreira na estrada
Uns bidons barrando
Do capim homens e homens saíram
Naquela noite tão estrelada

Lá nos deixaram prosseguir
E ao Negage conseguimos chegar
Minha família lá estava, consegui sorrir
E por uns tempos as lágrimas enxugar

Dali partimos p'ra Salazar novamente
Pois o Negage estava a ser bombardeado
O tempo passou tão rápidamente
Foi a última vez que todos estivemos lado a lado

Outra vez tivemos de fugir
Luanda a terra que nos acolheu
Mas p'ra Salazar tive eu de partir
Para os exames ainda do liceu

Sei que estes mal acabados
Com mais violência a guerra rebentou
Só tive tempo de chegar ao avião
E este prontamente dali me levou

Quando a Luanda cheguei
Minhas irmãs tinham partido
Nem um adeus, como chorei
Para o Brasil elas tinham ido

Pouco tempo depois soube
Que meu destino já 'stava traçado
A tristeza em mia alma não coube
Era um destino desgraçado

Mas a violência agravava-se
E eu lá tristemente me resignei
Com minha Mãe e irmã caçula
No último dia de Agosto cheguei

Logo no aeroporto de minha Mãe me separei
Nós para o Campo de Tiro, ela para Cascais
Eu que nunca longe de minha Mãe vivi
Afinal sofrimento ainda havia mais

Lá naquela pequena aldeola
Por arame farpado cercada
Meu olhar queria a liberdade
Todo o mundo m'olhava como a retornada

Os dias não passavam, arrastavam
Quando as janelas ao sol abria
Outrora os montes davam-me o bom dia
Agora o arame farpado ao sol brilhavam

Caminhava solitáriamente por aqueles caminhos
Atapetados por folhas
O cheiro da terra não era igual
E eu sentia-me tão mal

Quando saía daquele arame farpado
Por vezes até voltava a sorrir
Olhava aquele rio, aquele mar
Mas a minha esperança, era voltar

Voltar, voltar p'rá minha África
Para os meus montes, p'rá minha vida
Para os meus amigos, para o meu lar
Achava ainda que tudo estava no seu lugar

Foi então que fui p'rá pensão
Pensão Flor, de flor só o nome tinha
Um quarto exíguocom mia irmã compartilhado
Mas não havia arame farpado, era a libertação

Começou então a vida a decorrer
Era bicha p'ra comer, bicha p'ra recenssear
Eramos os retornados sem nenhum haver
Devíamos sempre e sómente agradecer

Consegui um emprego arranjar
Era voluntária numa instituição
Tantos casos horríveis presenciei
Que as lágrimas p'ra sempre sequei

Minha Mãe exemplo de coragem
Jamais a vi ou ouvi lamentar
A meu Pai e a nós também
Jamais nos deixou desanimar

Um novo lar conseguiram
Um pouco diferente do que deixámos
O amor e a alegria nele astearam
E então uma nova vida começámos
Zedlav